São Paulo, 25 de maio de 2004, sede do SETCESP. Nesta data tão especial aconteceu o relançamento da Comissão de Jovens Empresários e Executivos do Transporte Rodoviário de Cargas, a COMJOVEM, durante a gestão do Presidente Urubatan Helou. Nela, estavam presentes 22 jovens e apenas uma mulher: eu, Ana Jarrouge.
Não posso negar que foi um choque, que me senti um peixe fora d’água por alguns instantes, mas passou rápido não só pelo total acolhimento que recebi, mas também porque estava acostumada ao ambiente tomado por homens já que trabalhava numa transportadora desde meus 16 anos e me sentia muito à vontade no meio deles. Mas ali era diferente: eram todos empresários, e, muito embora jovens, tinham um ar de seriedade e de curiosidade, fato que me fez ficar alerta.
O depoimento é importante devido ao contexto, uma vez que, nas entidades, de fato, a presença de mulheres empresárias sempre foi rara, havendo pouquíssimas delas. Entretanto, aquele passo foi só o começo, pois a força da COMJOVEM se mostrou fundamental no processo de inserção das mulheres nas nossas entidades. E hoje temos muitas. A presença feminina não só cresce em números, mas também em qualidade, já que elas participam de forma ativa e mostram que podem fazer muita diferença.
Toda essa história me fez perceber o quanto o setor era “devedor” de espaço para as mulheres, mas ao mesmo tempo, desde aquela data, percebi que éramos bem-vindas, acolhidas e que, sim, éramos ouvidas e valorizadas. As mulheres estavam presentes nas empresas e só precisavam de um espaço e de um ambiente acolhedor para que aparecessem. E isso de fato ocorreu.
Dessa forma, logo que assumi a função de presidente executiva do SETCESP, em novembro de 2019, entidade que sempre me acolheu com muito carinho e atenção, senti que podia fazer mais pelas mulheres do transporte rodoviário de cargas (TRC) e comecei a pensar como colocar isso em prática.
Foi assim que em 2020, em plena pandemia, minha equipe e eu apresentamos ao conselho de administração um projeto inicial para valorização das mulheres que trabalham no transporte rodoviário de cargas. Demos um nome e uma “cara” e tínhamos alguns objetivos iniciais. Para nossa alegria, o projeto foi aceito por unanimidade, sem quaisquer ressalvas ou objeções. Desde aquele dia, nosso presidente, Tayguara Helou, jovem empresário que estava comigo naquela primeira reunião da COMJOVEM em 2004, nos deu total e irrestrito apoio ao projeto intitulado “Vez e Voz”. Ele adorou a ideia e até hoje, em toda oportunidade, faz questão de comentar sobre nosso movimento com orgulho genuíno e muito entusiasmo. Isso me deixou muito mais empolgada e otimista para tocar adiante aquele sonho que eu sabia que seria de muito valor para as mulheres que sempre estiveram comigo na COMJOVEM durante todos estes anos e, também, para todas outras mulheres que estão presentes nas empresas de transporte.
Assim nasceu o “Vez e Voz”, em outubro de 2020, após fazermos uma pesquisa que foi respondida por nada mais, nada menos, do que por 657 mulheres do nosso setor dispostas a colaborar e dar voz a muitas outras. Foi, de longe, a pesquisa com maior número de respondentes já feita pelo Instituto Paulista do Transporte de Carga (IPTC) encomendada pelo Sindicato das Empresas de Transportes de Carga de São Paulo e Região (SETCESP), e em tempo recorde. Foi uma grata surpresa saber que elas estavam, de fato, aguardando uma oportunidade para se manifestar e para colaborar com um movimento em prol da valorização das mulheres, cheio de nuances e desafios.
Cabe aqui ressaltar alguns resultados interessantes daquela pesquisa que nos revelou aquilo que já suspeitávamos: apesar da expressiva presença feminina no setor administrativo das empresas de transporte, há pouca presença nos setores operacionais e nos cargos C-level, como CEO, diretoria, presidência, conselhos de administração etc.
A pesquisa deixou claro que, embora presentes no setor administrativo das empresas de transporte, as mulheres representam, em média, apenas 14% do total de colaboradores e que o superior imediato delas é, em sua maioria, um homem (54% dos casos). Entretanto, alguns dados são muito positivos, como a porcentagem de 70% das respondentes concordando que em suas empresas a maternidade não representa um impeditivo para seu crescimento profissional. Ainda, quase todas as mulheres desejam alcançar uma posição maior em relação à que ocupa atualmente (91%), 79% se sentem preparadas para tal e 79% acreditam que o setor tem oportunidades para esse crescimento. Entretanto, apenas para 43% delas tais oportunidades de crescimento profissional no TRC são iguais entre homens e mulheres, notadamente nas empresas de pequeno e médio porte.
Outro número que chamou a atenção foi o baixo índice (35%) de mulheres que consideram que sua remuneração é igual a de um homem que exerce a mesma função. As mulheres negras são as que mais discordaram desta paridade salarial, principalmente as que atuam no segmento há mais tempo e, também, a média liderança (coordenadoras, gerentes etc.). Por fim, apenas 64% delas sentem que suas ideias e sugestões são ouvidas e valorizadas, sendo que as mulheres negras são as que se sentem menos ouvidas.
É neste contexto que devemos atuar: na busca incessante para que as oportunidades sejam iguais, para que haja equidade em relação à remuneração na mesma função e para que as mulheres sejam ouvidas e valorizadas dentro das organizações.
O nosso movimento já realizou 8 encontros com diversos temas relacionados ao universo feminino, como assédio moral e sexual, coragem de sermos nós mesmas onde estivermos, mulheres atuando na tecnologia e nas estradas, diversidade e violência doméstica. Até o momento que escrevo este artigo, as lives já foram visualizadas por quase 3.000 pessoas.
Temos um site exclusivo para o movimento, o www.vezevoz.org, no qual publicamos as histórias das mulheres que trabalham no TRC. Já contamos as experiências pessoais e profissionais de 20 mulheres, que foram visualizadas por 3.861 pessoas até esta data. As histórias são incríveis, todas de muita superação e de força de vontade, nos enchem de orgulho e otimismo e incentivam muitas outras mulheres a seguirem seus sonhos e a demonstrarem que nosso setor é, sim, acolhedor e que elas podem fazer muita diferença nas empresas em que atuam.
Além disso, em março de 2021, mês das mulheres, lançamos nosso manifesto, no qual o SETCESP declara publicamente: “Somos a favor de mais mulheres atuando em empresas e em instituições do transporte rodoviário de cargas”. Mas não só isso: é um manifesto que efetivamente dá total apoio às mulheres e se propõe a discutir, de forma profunda, ações que contribuam para o crescimento profissional dessas mulheres, além de ajudar e de incentivar que boas práticas sejam adotadas pelas empresas de transporte para atrair, recepcionar, acolher e reconhecer o trabalho delas, discutindo assuntos relacionados ao universo feminino de forma constante e, também, criando canais aos quais elas possam relatar quaisquer problemas que estejam enfrentando, como violência e casos de assédios.
Nosso movimento está apenas começando, engatinhando. A pandemia não foi capaz de nos segurar e não nos impediu de torná-lo uma bandeira do setor. O movimento vem crescendo gradativamente, sendo reconhecido entre as entidades, entre as empresas de transporte e entre os demais stakeholders no nosso segmento. Nesse período, buscamos formar parcerias que pudessem nos dar o apoio necessário para não só tornar o movimento mais conhecido e abrangente, mas para nos ajudar, de forma ativa, na busca de ações concretas para valorização das mulheres no TRC.
Neste sentido, conseguimos firmar parceria com a Federação das Empresas de Transporte de Cargas do Estado de SP (FETCESP), com a Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística (NTC&Logística), com a Federação das Empresas de Transporte de Carga e Logística no Estado de Santa Catarina (FETRANCESC), com a Associação Nacional dos Fabricantes de Implementos Rodoviários (ANFIR), com a Mercedes-Benz por meio do movimento “A Voz Delas”, com a Fundação Adolpho Bósio de Educação no Transporte (FABET) e com a empresa de transporte de carga Pizzattolog. Somos muito gratos a todos eles, que entenderam a importância do nosso movimento e desde o início resolveram apoiá-lo e incentivá-lo.
Falando do agora, iniciamos em setembro de 2021 as reuniões mensais de um grupo de trabalho formado por voluntários para desenhar e implantar ações efetivas dentro do movimento. Essas ações incluem a elaboração de manuais de boas práticas, estudos de casos, programas de treinamento de inclusão, realização de eventos e concursos, entre outros.
Nosso intuito é ambicioso: queremos alcançar o maior número possível de parceiros para, justamente, tornar este movimento uma bandeira do nosso setor ao lado de outros grandes temas e desafios que o transporte de cargas possui. Entretanto, queremos que, efetivamente, as mulheres sejam vistas como parte integrante e fundamental para o crescimento das organizações do TRC para que sejam dadas oportunidades reais de evolução profissional; para que elas tenham um tratamento digno, igualitário e equânime; para que tenham acesso a uma infraestrutura adequada para realizar suas atividades; para que tenham um ambiente saudável e respeitoso; para que tenham o apoio e o respaldo necessários em casos de abuso, de assédio ou mesmo de violência doméstica que afete seu desempenho profissional; e, por fim, para que mais mulheres enxerguem no nosso setor uma real oportunidade de trabalho, especialmente para a função de motorista, posição na qual elas já têm demonstrado grande destreza, profissionalismo, capacidade técnica, habilidade relacional com os clientes e excelente desempenho operacional com os veículos.
Mulheres, este movimento é para vocês. Vamos espalhar ele pelo Brasil afora, mostrando a todos que no TRC as mulheres são muito bem-vindas e têm um valor inestimável.
Homens, contamos com seu apoio incondicional nesta empreitada. Nossa pretensão não é, e nunca será, ocupar seus lugares, mas sim estar ao lado de vocês em todas as lutas, desafios e oportunidades para que juntos possamos mostrar a toda a sociedade o profissionalismo, a capacidade técnica, a qualidade e a total abertura para diversidade que o transporte rodoviário de cargas deve ter.
Aqui, o que vale é a competência, por isso qualquer mulher sempre terá VEZ e VOZ.
Ana Jarrouge
Presidente executiva do SETCESP
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